
Como o Liverpool FC se tornou um símbolo da identidade de uma das cidades mais emblemáticas da Inglaterra
- carinewspuc
- 4 de jun.
- 4 min de leitura
O termo “Scouse”, hoje indissociável da identidade cultural de Liverpool, teve origens humildes e inicialmente pejorativas. Referia-se a um ensopado simples consumido por populações empobrecidas, em sua maioria descendentes de imigrantes irlandeses. Com o tempo, o termo extrapolou o prato e passou a nomear os próprios habitantes das áreas mais marginalizadas da cidade. Essa designação, antes usada com desdém, foi ressignificada e transformada em símbolo de pertencimento, orgulho e resistência.
A identidade “Scouse” carrega marcas profundas de um passado colonial, dos conflitos sectários entre católicos irlandeses e protestantes ingleses, além de um histórico constante de antagonismo com o governo central britânico. Episódios como o desastre de Hillsborough e a oposição à política de austeridade de Margaret Thatcher solidificaram a percepção de Liverpool como uma cidade à parte , frequentemente em confronto com a narrativa nacional dominante. Assim, a frase “não somos ingleses, somos Scouse” deixa de ser um mero slogan e torna-se uma expressão pungente de uma memória coletiva forjada na exclusão, na dor e na solidariedade.
O ápice das tensões entre o governo britânico e os torcedores de futebol, particularmente os do Liverpool, ocorreu nos anos 1980. A tragédia de Heysel, em 1985, na Bélgica, marcou um ponto de inflexão. Durante a final da Liga dos Campeões entre Juventus e Liverpool, o colapso de uma barreira causou a morte de 39 torcedores italianos. O episódio, amplamente atribuído à violência das torcidas inglesas, resultou no banimento do Liverpool de competições europeias por cinco anos. A imagem dos torcedores ingleses foi reduzida à de “hooligans” — violentos, irracionais e perigosos —, alimentando estigmas que se mostrariam devastadores anos depois.
Em 1989, apenas quatro anos após Heysel, o desastre de Hillsborough chocou o país. O Liverpool enfrentava o Nottingham Forest pela semifinal da FA Cup, no estádio de Hillsborough, em Sheffield. A polícia, despreparada para lidar com a multidão de mais de 24 mil torcedores visitantes, cometeu erros graves de logística e segurança: direcionou a massa para uma entrada estreita que levava a setores já superlotados. O resultado foi trágico. Com cercas impedindo a fuga, torcedores foram esmagados contra as grades e pisoteados. 96 pessoas morreram e mais de 760 ficaram feridas.
Embora falhas estruturais e logísticas tenham sido determinantes, a narrativa oficial culpou imediatamente os torcedores. O jornal The Sun desempenhou papel central na difamação, publicando uma manchete infame intitulada “The Truth” (A Verdade), que acusava os torcedores de roubar vítimas e agredir policiais. As alegações foram desmentidas pelo Relatório Taylor, de 1990, que atribuiu responsabilidade à má gestão policial. Ainda assim, o governo de Margaret Thatcher se absteve de defender os torcedores ou corrigir a narrativa, contribuindo para o ressentimento profundo que permanece até hoje.
A negligência oficial não foi pontual. Arquivos desclassificados revelaram o desprezo sistemático da administração Thatcher por Liverpool. Um dos trechos mais emblemáticos foi pronunciado por Sir Geoffrey Howe, então ministro do gabinete: “Não consigo não sentir que a opção de declínio controlado é uma que não devemos descartar completamente. Não podemos gastar nossos recursos limitados tentando fazer água correr para cima da montanha.” Essa frase simboliza a política de abandono deliberado de regiões como Liverpool, tratadas como um fardo indesejável.
Atualmente, tanto The Sun quanto Thatcher são amplamente rejeitados na cidade. Apenas em 2016 — quase três décadas depois — os inquéritos foram encerrados com a declaração oficial de que as mortes em Hillsborough foram causadas por falhas policiais, sendo classificadas como “morte ilegal”. Em 2017, o Liverpool Football Club baniu o jornal de suas coletivas de imprensa, jogos e instalações. A cidade aderiu a um boicote generalizado: em Liverpool, The Sun praticamente não circula.
O Liverpool FC, mais do que um clube, é uma extensão da identidade de sua comunidade. O lema “You’ll Never Walk Alone” tornou-se uma promessa mútua entre clube e cidade, especialmente após Hillsborough. O apoio incondicional da torcida, mesmo nos momentos mais difíceis, reflete valores de solidariedade, coletividade e resistência que ultrapassam os gramados. O futebol, em Liverpool, é também linguagem de protesto e pertencimento.
O luto por Hillsborough permanece vivo. O número 96, estampado no uniforme do clube, é mais que uma homenagem: é um lembrete constante de uma ferida aberta. Ao conquistar o campeonato inglês em abril de 2020, a Nike, patrocinadora do clube, publicou uma mensagem nas redes sociais que resumia o sentimento coletivo: “O time mais bem-sucedido da Inglaterra não é inglês, é Scouse.” Uma afirmação que não fala apenas de futebol — mas de identidade, dor e resiliência.
FONTES:
MULLEN, Tom. Heysel disaster: English football 's forgotten tragedy?. BBC News. 29 de maio de 2015. Disponível em: https://www.bbc.com/news/uk-england-merseyside-32898612
Por cobertura de Hillsborough, Liverpool bane The Sun de Anfield. Lance!. 10 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.lance.com.br/futebol-internacional/por-cobertura-hillsborough-liverpool-bane-the-sun-anfield.html
Thatcher urged “let Liverpool decline” after the 1981 riots. BBC News. 30 de dezembro de 2011. Disponível em:
CONN, David. Liverpool ban Sun journalists over Hillsborough coverage. The Guardian. 10 de fevereiro de 2017. Disponível em: https://www.theguardian.com/football/2017/feb/10/liverpool-ban-the-sun-newspaper-over-hillsborough-coverage
CONN, DAVID. Hillsborough inquests jury rules 96 victims were unlawfully killed. The Guardian. 26 de abril de 2016. Disponível em:
TROVÓ, Amanda. A relação entre política e futebol: uma história de rivalidade entre a Dama de Ferro e a cidade de Liverpool. Ludopédio. 15 de abril de 2024. Disponível em:
DUGGAN, Keith. ‘We are Not English, We Are Scouse’ – Why Liverpool boo the anthem. The irish times. 21 de maio de 2022. Disponível em:
TIKKANEN, Amy. Hillsborough disaster human crush, Sheffield, England, United Kingdom (1989). Brittanica. 18 de abril de 2025. Disponível em:
JEWELL, JOHN. Finally, the truth about Hillsborough (but you won’t read it on the front of The Sun). The Conversation. 27 de abril de 2016. Disponível em:
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