Ultraconservadorismo e Revisionismo Histórico no Japão: Sobre o que se trata o Movimento Nippon Kaigi
- Ana Beatriz Morreira
- 25 de jun.
- 3 min de leitura
A rendição japonesa em 1945 marcou oficialmente o fim de uma era de agressão imperial e violência estatal. Massacres, ocupação brutal e a sistemática negação de direitos básicos caracterizaram a trajetória expansionista do Japão na Ásia, deixando feridas profundas na história contemporânea. Entretanto, a transição democrática não estabeleceu as bases para uma responsabilização plena. Décadas mais tarde, em um cenário global marcado pelo recrudescimento de nacionalismos radicais, setores ultraconservadores passaram a promover um projeto revisionista que hoje atinge o cerne das instituições políticas, educacionais e culturais japonesas. É neste contexto que atua o Nippon Kaigi: a mais bem organizada expressão dessa agenda, empenhada em reabilitar o passado imperial, relativizar as responsabilidades do Japão na guerra e subverter as bases pacifistas da ordem constitucional instaurada no pós-1945.
Fundado em 1997, o Nippon Kaigi é uma espécie de fusão de organizações anteriores, o Nihon o Mamoru Kai e Nihon o Mamoru Kokumin Kaigi e remonta a articulações que combinam religiosidade, nacionalismo e ressentimento pós-guerra. Embora seu número formal de membros seja relativamente modesto, o grupo reúne figuras políticas, empresários, líderes religiosos, intelectuais revisionistas de destaque e o próprio ex-primeiro-ministro Abe Shinzo, consolidando o Nippon Kaigi como uma das maiores organizações da direita nacionalista japonesa. Sinteticamente, o grupo pretende restaurar o orgulho imperial japonês, exaltando a figura do imperador e promovendo valores ultraconservadores, nacionalistas e autoritários no sistema político e educacional do país.

Um dos pilares para a promoção destes objetivos é a revisão da Constituição Pacifista de 1947, especialmente o Artigo 9, o qual proíbe formalmente o Japão de manter forças armadas ofensivas e renuncia à guerra como meio de resolução de disputas internacionais. Para o grupo, este aspecto é um forma de humilhação e cerceamento da soberania da nação e sua revisão seria um instrumento para reafirmar o papel do Japão como potência militar e política na arena política do sistema internacional. Esta ofensiva se articula também na revalorização do kokutai, o conceito de "política nacional" da era imperial Meiji, com a centralidade do imperador como símbolo da unidade espiritual e política da nação.
Paralelamente, um dos principais pontos ideológicos do Nippon Kaigi é a de reconfiguração da mentalidade japonesa por meio do revisionismo histórico, atingindo diretamente a memória coletiva. Os crimes de guerra cometidos pelo Japão durante a expansão imperial como o Massacre de Nanquim e o sistema das “mulheres de conforto”, uma instrumentalização do estupro como arma de guerra, são abertamente negados ou relativizados por meio de uma narrativa de “vítimas da justiça dos vencedores”, na qual o Japão teria agido em prol da libertação da Ásia frente ao colonialismo ocidental, e não como ator imperialista.
O sistema educacional japonês é um alvo crucial desta agenda revisionista. Programas de ensino são reformulados para minimizar o papel dos direitos humanos, combater o que o grupo denomina “excessivo individualismo” e promover a exaltação de símbolos nacionais como a bandeira e o hino. Escolas como o Tsukamoto Kindergarten, que retomam recitações do Rescrito Imperial de Educação da era Meiji, evidenciam a tentativa de reinstaurar valores pré-guerra nas novas gerações demonstrando um esforço em moldar uma juventude que internalize a devoção ao Estado e ao imperador, dissolvendo a crítica histórica, a pluralidade democrática e um combate ao ensino de valores universais de direitos humanos e de igualdade de gênero, qualificando tais conteúdos como desvios “ocidentais” incompatíveis com a essência cultural japonesa.
Esse movimento revisionista chamou a atenção de países da região asiática diretamente afetados pelo expansionismo militar japonês,como a China e a Coreia do Sul. A falta de responsabilização efetiva e a negação do sofrimento de vítimas de um passado cruel alimentam ressentimentos históricos que tensionam as relações diplomáticas no Leste Asiático e fragilizam a credibilidade internacional do Japão enquanto ator democrático comprometido com os direitos humanos.
Mais do que uma disputa acadêmica sobre interpretações do passado, o revisionismo promovido pelo Nippon Kaigi representa uma ameaça concreta à democracia japonesa. A manipulação da memória coletiva não apenas distorce os fatos históricos, mas também compromete valores fundamentais como a liberdade de pensamento, a tolerância à diversidade e o reconhecimento da dignidade das vítimas de violações passadas. A memória histórica desempenha papel central na construção de sociedades democráticas e no fortalecimento de uma cultura de direitos humanos. Quando essa memória é sistematicamente atacada e instrumentalizada por projetos autoritários, o que está em jogo não é apenas o passado, mas o próprio futuro da democracia e da paz.
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