
O movimento 4B e a demanda pela igualdade de gênero na Coreia do Sul
- carinewspuc
- 14 de jun.
- 4 min de leitura
Surge no país o movimento 4B, que foi batizado dessa forma graças aos quatro princípios basilares do movimento. São eles: 비섹스 (bisekseu), 비출산 (bichulsan), 비연애 (biyeonae) e 비혼 (bihon), que em tradução livre seriam, respectivamente, não fazer sexo, não ter filhos, não namorar e não se casar.
Essa organização surge como resposta ao tratamento enfrentado pelas mulheres na sociedade coreana. Ainda que a Coreia do Sul tenha protagonizado um desenvolvimento econômico exponencial nas últimas décadas, a mesma evolução não pode ser observada na atribuição dos papéis de gênero. O país detém o número mais alto de disparidade salarial dentre os membros da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), com 31%. Essa discrepância é ainda mais perceptível quando se acrescenta o fator etário. Entre empregados na casa dos 20 anos, a diferença entre salaŕios para homens e mulheres é de apenas 3%, entre funcionários de 30 anos, 13%, 27% para aqueles na faixa dos 40 e chega ao ápice para os 50+, com significativos 37.5%. Mesmo que as oportunidades iniciais de formação sejam semelhantes, carreiras masculinas tendem a progredir de forma consideravelmente mais simples. Essas estatísticas auxiliam também na compreensão da diminuição acelerada da taxa de natalidade do país, que ocupa a última posição no ranking mundial.
Para além do mundo corporativo, a violência de gênero também assola a sociedade civil sul-coreana. Casos emblemáticos como o da jovem de 23 anos que foi brutalmente assassinada no banheiro da estação de trem em Gangnam por um homem desconhecido que afirmou à polícia que odiava mulheres já que elas o “ignoravam e desprezavam” no bar onde trabalhava, em 2016 evidenciam a brutalidade a qual essas mulheres são submetidas. Dados do Gabinete do Procurador Supremo da Coreia do Sul, 90% das vítimas de crimes violentos no país em 2019 eram mulheres.
Manifestantes deixam mensagens em bilhetes nas paredes da estação em solidariedade à vítima.
Ademais, apenas no primeiro semestre de 2024, o país registrou cerca de 300 casos de deepfakes com conteúdo sexual envolvendo mulheres, segundo dados da polícia sul-coreana. Essa tecnologia, que manipula vídeos para criar cenas falsas, acentuou o medo femino em um país já marcado pelo escândalo dos vídeos de câmeras-espiãs (as chamadas “molka”), que invadiram a privacidade de milhares de mulheres em transportes coletivos, banheiros e saunas, gravando-as em situação de vulnerabilidade. A negligência policial em relação às molka enfureceu ainda mais as mulheres sul-coreanas.
Todo esse cenário de extrema violência contra mulheres e ineficácia institucional contribuiu para o fortalecimento de um movimento feminista radical no país. Desde 2018, quando dezenas de milhares de mulheres protestaram em Seul com o lema “Minha vida não é seu filme pornô”, desenvolve-se o movimento 4B; uma iniciativa protagonizada por aquelas que por muito tempo foram oprimidas, impedidas de perseguir suas carreiras e sonhos para além da maternidade e casamento, violentadas em todas as instâncias e até mortas, mas que hoje já não mais aceitam a classificação de cidadãs de segunda categoria.
“Embora ser contra namoro e sexo com homens possa parecer extremo para muitos, o movimento reflete a intensidade da pressão que as mulheres enfrentam aqui”, explicou a jornalista Hawon Jung em entrevista à revista Marie Claire. Segundo Jung, esse levante feminino não indica que as mulheres sul-coreanas são mais progressistas do que o resto do mundo — na realidade, escancara como os homens do país, especialmente os mais jovens, tornaram-se mais conservadores.
Pesquisas recentes apontam que cerca de 25% dos homens sul-coreanos entre 20 e 30 anos se identificam como anti-feministas. Muitos deles acreditam que a supremacia feminina é o objetivo do feminismo e rejeitam políticas de igualdade salarial, considerando elas uma “discriminação reversa”. Esse discurso ganhou força nas eleições presidenciais de 2022, quando o atual presidente Yoon Suk-yeol, do Partido Conservador, fez campanha com promessas como a abolição do Ministério da Mulher e da Família e o enrijecimento da pena por difamação ─ interpretado pelo movimento feminista como uma maneira de calar vítimas de violência sexual.
"Embora o movimento 4B tenha ganhado destaque no país e incentivado o foco das mulheres em carreiras, independência e bem-estar próprio, ele também é alvo de críticas. A artista e antropóloga Siren Eun Young Jung questiona o foco excessivo do movimento na auto-otimização: “Elas economizam cada centavo, investem em ações e consomem apenas luxo. Mas, se o objetivo é apenas acumular riqueza e status por meio do hiper-capitalismo, diria que estão perdendo o ponto. Não basta focar no sucesso individual; isso só arranha a superfície do que uma verdadeira mudança política exige.”.
Apesar do engajamento crescente, o movimento ainda não é adotado pela maioria das mulheres sul-coreanas. O feminismo permanece fortemente mal visto no país, dificultando a criação de uma frente ampla e efetiva para pressionar por mudanças estruturais. A retórica conservadora, muito presente na nação, sustenta que mulheres devem alcançar o sucesso com esforço próprio, ignorando as desigualdades históricas e estruturais. O crescimento do feminismo na Coreia do Sul, portanto, desdobra-se em um movimento reacionário por parte de grupos historicamente privilegiados do país, mobilizando, paradoxalmente, políticas anti-feministas que visam a manutenção da ordem da sociedade sul-coreana.
A luta feminista na Coreia do Sul, portanto, cresce intensivamente, mas enfrenta retrocessos institucionais e uma forte resistência cultural, além da falta de uma articulação política que eleve o movimento para o âmbito coletivo, saindo do campo individualista de auto-otimização.
REFERÊNCIAS:
AZENHA, Manuela. Por que sul-coreanas não querem mais se relacionar com homens e qual a razão para o movimento ressoar em tantas mulheres mundo afora? Revista Marie Claire. 06 de junho de 2024. Disponível em: https://revistamarieclaire.globo.com/google/amp/comportamento/noticia/2024/06/por-que-sul-coreanas-nao-querem-mais-se-relacionar-com-homens-e-qual-a-razao-para-o-movimento-ressoar-em-tantas-mulheres-mundo-afora.ghtml. Acesso em: 6 jun. 2025.
CHOI, Hyaeweol. Tragedy in Seoul brings misogyny to light. East Asia Forum. 03 de agosto de 2016. Disponível em: https://eastasiaforum.org/2016/08/03/tragedy-in-seoul-brings-misogyny-to-light/
DW DOCUMENTARY. Resistance through no sex: The 4B movement in South Korea. 2025. Disponível em: https://youtu.be/OCN-dd5J1lE. Acesso em: 6 jun. 2025.
GAO, Ming. ‘A woman is not a baby-making machine’: a brief history of South Korea’s 4B movement – and why it’s making waves in America. The Conversation. 10 de novembro de 2024. Disponível em:
MOON, Katharine. South Korea 's misogyny problem. East Asia Forum. 09 de dezembro de 2022. Disponível em:
OJARDIAS, Frédéric. A revolta das sul-coreanas. Le Monde Diplomatique Brasil. 30 de outubro de 2020. Disponível em:
https://diplomatique.org.br/a-revolta-das-sul-coreanas/. Acesso em: 6 jun. 2025.
PARK, Stephanie Seohoi. Murder at Gangnam Station: A Year Later. Korea Exposé. 18 de maio de 2017. Disponível em:
Posts recentes
Ver tudoIntrodução A República da União de Mianmar é um país localizado no sudeste asiático, que faz fronteira com a China, Tailândia, Índia,...
Comments