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O Silêncio como Continuidade da Violência: O Estupro como Arma de Guerra e a Luta por Reconhecimento

  • Alice Cavalheiro, Giovanna Bottini, Luiza Messias Chabaribery
  • 8 de jul.
  • 5 min de leitura

Entre 1910 e 1945, a Península da Coreia esteve sob domínio do Império Japonês. Essa dominação ultrapassava a questão territorial: a população coreana foi obrigada a adotar nomes japoneses, o uso da língua coreana foi proibido, e os coreanos foram recrutados à força para servir nas forças armadas japonesas. Antes mesmo da Segunda Guerra Mundial, o controle japonês estabeleceu bordéis militares, nos quais mulheres coreanas foram forçadas a prestar serviços sexuais a soldados japoneses e, posteriormente, também a soldados estadunidenses. Essas mulheres ficaram conhecidas como mulheres de conforto, um eufemismo criado para suavizar a realidade de um sistema de escravidão sexual que gerou consequências devastadoras para as vítimas e suas comunidades. Embora a maioria das vítimas fosse coreana, muitas também vinham da China, Taiwan, Filipinas, Indonésia, Malásia, Vietnã, entre outros países da região, além de territórios europeus ocupados pelo Japão.

As mulheres coreanas eram enviadas em maior número a esses locais devido à sua familiaridade com a língua japonesa, resultado direto da ocupação imperial. Isso tornava as mulheres coreanas alvos preferenciais dos "recrutadores" militares. Milhares de meninas foram arrancadas de seus lares e submetidas a um sistema onde sofreram abusos sexuais, torturas físicas, como facadas e espancamentos, e diversas outras violações de direitos humanos, deixando sequelas físicas e psicológicas profundas.

A questão das "mulheres de conforto" não deve ser tratada apenas como um episódio isolado do passado ou uma tragédia feminina circunscrita à Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma questão complexa, que exige estudo e reflexão contínuos, especialmente no campo dos direitos humanos e dos direitos das mulheres, no enfrentamento à violência sexual e ao tráfico de pessoas. Muitos dos crimes cometidos nesse contexto não foram devidamente reconhecidos ou julgados, contribuindo para a invisibilização das vítimas e a perpetuação da impunidade.

O diálogo entre Japão e Coreia do Sul sobre essa questão foi longo e marcado por impasses. Por mais de quatro décadas após o fim da guerra, o Japão evitou qualquer pronunciamento oficial. Somente com a crescente pressão dos movimentos feministas sul-coreanos o governo japonês reconheceu formalmente o envolvimento do Exército Imperial na administração dos bordéis. Esse reconhecimento veio por meio da Declaração Kōno, em 4 de agosto de 1993, pelo então Secretário-Chefe do Gabinete, Yōhei Kōno. Na ocasião, o governo expressou pesar e apresentou um pedido formal de desculpas.

Em 1995, foi criado o Fundo Asiático para as Mulheres (Asian Women's Fund), destinado a compensar financeiramente as sobreviventes. No entanto, a iniciativa foi duramente criticada na Coreia do Sul, pois os recursos vinham de doações privadas e não diretamente do Estado japonês, o que foi interpretado como uma recusa em assumir responsabilidade legal. Assim, o fundo foi visto como uma medida humanitária, não como reparação estatal legítima. Em 2015, Japão e Coreia do Sul firmaram um novo acordo prevendo um pedido de desculpas e a criação de um fundo de US$ 8,3 milhões para as vítimas sobreviventes. O acordo, no entanto, também foi alvo de críticas, sendo percebido como uma tentativa de "encerramento" do assunto, sem um pedido inequívoco de perdão por parte do Estado japonês. Em 2018, durante o governo do presidente Moon Jae-in, a Coreia do Sul anunciou a dissolução da fundação criada a partir desse acordo.

Essa decisão reacendeu tensões diplomáticas. O Japão considerou a medida uma violação do acordo, que havia sido classificado como "final e irreversível", e acusou a Coreia do Sul de descumprir os compromissos assumidos. Desde então, a Justiça sul-coreana tem proferido sentenças favoráveis às vítimas, enquanto o Japão defende-se com base na imunidade soberana, que protege Estados de serem processados em tribunais estrangeiros.

A violência sexual em conflitos armados não pode ser entendida como um efeito colateral da guerra. Trata-se de uma prática estruturada e intencional, historicamente usada como instrumento de dominação política, humilhação social e destruição identitária. O estupro como arma de guerra constitui uma grave violação dos direitos humanos, sendo cada vez mais reconhecido pelo direito internacional como crime de guerra, crime contra a humanidade e, em certos contextos, como componente do crime de genocídio.

No campo das Relações Internacionais, esse fenômeno deve ser analisado sob a ótica da segurança humana, do direito internacional e da crítica feminista às estruturas patriarcais do sistema internacional. Como argumenta Tickner (1992), a invisibilidade das experiências femininas nos estudos tradicionais de segurança marginalizou questões como a violência sexual em conflitos. O reconhecimento do estupro como arma de guerra evidencia, portanto, não apenas a brutalidade dos conflitos, mas também as relações de poder e as assimetrias de gênero nas dinâmicas internacionais.

O caso das mulheres de conforto é um dos mais emblemáticos. Estima-se que entre 50 mil e 200 mil mulheres tenham sido vítimas do sistema de escravidão sexual instituído pelo Exército Imperial Japonês. Segundo Yoshimi (2000), esses bordéis foram organizados sistematicamente pelas autoridades japonesas com o pretexto de "manter a moral dos soldados", evidenciando uma política de Estado baseada na violação sistemática dos direitos humanos. Outros casos recentes, como os estupros em massa durante o genocídio em Ruanda (1994) e na guerra da Bósnia (1992–1995), demonstram a persistência dessa prática. Na Bósnia, o estupro de mulheres muçulmanas por milícias sérvias foi usado como estratégia de limpeza étnica, visando à destruição simbólica e biológica do grupo inimigo. Como afirmou a jurista Catharine MacKinnon (1994), o estupro em contextos de guerra é "a forma mais eficaz de desumanizar o inimigo, pois atinge o corpo da mulher e, por meio dele, o corpo político de sua comunidade".

O reconhecimento jurídico dessa prática avançou com os Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia (TPII) e Ruanda (TPIR), que passaram a considerar o estupro como forma de genocídio, tortura e crime contra a humanidade. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998) consolidou esse entendimento, incluindo o estupro, a escravidão sexual e outras formas de violência de gênero como crimes internacionais. Ainda assim, a responsabilização efetiva esbarra em obstáculos institucionais, no estigma enfrentado pelas vítimas e na resistência política de Estados e grupos armados.

Perspectivas críticas e feministas nas Relações Internacionais têm impulsionado o debate sobre o estupro como arma de guerra, denunciando a lógica militarista e masculinista que estrutura o sistema internacional. Como defende Enloe (2000), a guerra não é apenas uma disputa entre Estados, mas um processo profundamente enraizado em construções sociais de gênero — onde o corpo da mulher torna-se campo de batalha literal e simbólico. Compreender o estupro como arma de guerra exige, portanto, uma abordagem multidimensional que articule gênero, poder, direito e segurança. É essencial reconhecer que a violência sexual em conflitos armados não é acidental, mas estratégica, e, por isso, deve ser combatida com políticas de prevenção, justiça de transição e mecanismos eficazes de reparação. O silêncio das vítimas, frequentemente imposto pela vergonha e pela impunidade, precisa ser rompido por meio do reconhecimento histórico, da justiça e do compromisso internacional com a não repetição.

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