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Direitos Humanos e Questões Sociais: A Crise na Síria

  • CARI News - Grupo 2
  • 12 de abr.
  • 14 min de leitura

LEAD: O som das bombas silenciou, mas a dor da guerra ainda ecoa na Síria. Em dezembro de 2024, após anos de sofrimento, perdas e deslocamentos forçados, o regime de Bashar al-Assad chegou ao fim com o avanço do grupo rebelde Hayat Tahrir al-Sham. Enquanto um novo governo se forma entre incertezas, milhões de sírios ainda vivem longe de casa, tentando reconstruir suas vidas em campos de refugiados e comunidades sobrecarregadas. A queda de um regime autoritário pode representar um recomeço — mas para muitos, a paz continua sendo uma promessa distante.


Recentemente, no dia 8 de Dezembro de 2024, o governo sírio sucumbiu após o avanço do grupo rebelde Hayat Tahrir al-Sham (HTS), pondo fim a um regime autocrático de quase meio século de duração sob comando da família al-Assad. Mas como isso aconteceu? Por que a família al-Assad se manteve no poder por tanto tempo e só foi derrubada no final de 2024? Quantos e quais são os grupos rebeldes e pelo o que eles lutam? O que aconteceu com os refugiados sírios desde o início da guerra civil? Como a comunidade internacional reagiu à ascensão de um grupo dito terrorista pelo Ocidente? Todas essas perguntas serão respondidas ao decorrer da matéria.


Contexto Histórico

Independente em 1945, o país passou por diversos golpes de Estado bem sucedidos ao longo da segunda metade do século XX. O último, realizado em 1970, ficou conhecido como a Revolução Corretiva na Síria de 1970, em que a administração vigente foi derrubada e Hafez al-Assad assumiu a presidência do país, no ano seguinte. Com isso, a repressão fez parte do cotidiano dos sírios por muito tempo, com o objetivo de se manter no poder. Em um contexto de Guerra Fria, aliou-se com a União Soviética e se opôs ao governo de Israel,  considerando a perda das Colinas de Golã para os israelenses, sofrida na Guerra dos Seis Dias (1967), e preservando ideais vindos do pan-arabismo. Hafez al-Assad se manteve no poder até seu falecimento, em 2000, até então vítima de um ataque cardíaco. Entretanto, com o fim de seu governo, Bashar al-Assad, seu filho, assumiu o poder no mesmo ano, mantendo pulso firme frente aos opositores. 

Hafez al-Assad e à direita, Bashar al-Assad


Em 2010, surge a Primavera Árabe, marcada por uma série de revoltas populares que pregava o florescimento das democracias populares em países árabes, que, em sua maioria, apresentavam posturas ditatoriais. Países como Tunísia, Argélia, Egito, Iêmen e Líbano tiveram seus governos questionados a partir de manifestações.  A Síria não foi exceção. Em 2011, o que era para ser apenas uma manifestação pacífica deu origem a uma verdadeira guerra civil, graças à repressão exagerada do ditador à um movimento contrário ao seu governo. É esse acontecimento que resultou no início da Guerra Civil Síria, que matou mais de 528500 pessoas, sendo quase 128 mil deles civis, segundo o Observatório Sírio para os Direitos Humanos.


Síria Contemporânea e Queda de Bashar al-Assad

Em 2024, com o enfraquecimento do apoio russo e iraniano à Síria, causado pela Guerra entre Rússia e Ucrânia e os conflitos entre Irã e Israel, o governo de Bashar al-Assad perdeu força militar. A partir de então, o grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS) avançou deliberadamente, conquistando as principais cidades em apenas 12 dias, incluindo a capital Damasco. No dia 8 de dezembro de 2024, foi anunciado pela força rebelde: “O tirano Bashar al-Assad fugiu” e “Após 50 anos de opressão sob o governo Baath e 13 anos de crimes, tirania e deslocamento [forçado], anunciamos hoje o fim deste período sombrio e o início de uma nova era para a Síria”. 

Outra possível causa do fim do apoio ao governo sírio aconteceu em 2017, durante um diálogo envolvendo os principais Estados aliados da Síria, Irã, Turquia e Rússia, com o objetivo de tentar encontrar uma solução prática para a guerra civil, no chamado Processo de Astana. Em resposta, al-Assad mostrou-se ser “mais um fardo do que um aliado [aos três países], o que significa que seu tempo havia se esgotado”, admitiu Saeed Laylaz, analista do governo iraniano, ao Financial Times.

Vale a pena esclarecer que o HTS não controla o país inteiro, somente as principais cidades como Aleppo, Homs e a capital. Ainda nesse ponto, cabe afirmar que a guerra civil ainda não acabou, como alertado o enviado especial da ONU (Organização das Nações Unidas) para a Síria, Geir Pedersen, já que ainda existem tensões entre o HTS e grupos pró-turcos e pró-curdos na porção Norte e Nordeste do território sírio. Por fim, após a derrubada do governo, o HTS definiu que o novo presidente do país é Ahmed al-Sharaa (cujo nome de guerra é Abu Mohammed al-Julani) líder do grupo.

Novo presidente sírio, Ahmed al-Shara
Novo presidente sírio, Ahmed al-Shara

Repercussão Internacional

Internacionalmente, houve críticas aos revolucionários por parte de certos países, visto que o Hayat Tahrir al-Sham é um um ex-braço da Al Qaeda. 

A exemplo, é possível expor o controverso caso de Israel. A vice-ministra israelense de Relações Exteriores, Sharren Haskel, afirmou que al-Julani é “lobo em pele de cordeiro”, devido seu legado jihadista: "É importante evitar cair na tentação de absolver os grupos jihadistas na Síria. Sabemos quem eles são e qual é sua verdadeira natureza, embora mudem de nome, e entendemos até que ponto são perigosos para o Ocidente", afirmou Haskel. Paradoxalmente, em entrevista ao jornal Times of Israel, o líder revolucionário agradeceu ao governo de Benjamin Netanyahu por seu apoio contra Assad: "Digo apenas que somos gratos a Israel por seus ataques contra o Hezbollah e a infraestrutura iraniana na Síria. Esperamos que após a queda de Assad, Israel plante uma rosa no jardim sírio e apoie o povo sírio, para benefício da região. O povo sírio é quem vai permanecer na fronteira com Israel, não Assad ou os iranianos” afirmou al-Sharaa.

Vale a pena destacar, também, o Irã. Com o declínio do governo de Bashar al-Assad, chamado de “o herói do mundo árabe” pelo líder supremo iraniano, Masoud Pezeshkian, o país perdeu mais um aliado importante, diminuindo a influência na região e enfraquecendo o apoio estratégico à grupos como o Hezbollah, o Hamas e os Houthis no Iêmen. Ahmed al-Sharaa acusou Teerã de “disseminar  o sectarismo e alimentar a corrupção”, visto que o país investiu mais de 30 bilhões de dólares desde o início do conflito civil, sob o pretexto de combater o Estado Islâmico.

Finalmente, o Ocidente ainda vê a Síria como um país ainda instável. Apesar dessas preocupações, os países do norte global iniciaram conversas com o HTS, avaliando que essa é a melhor opção no momento. Os Estados Unidos retiraram a recompensa pela cabeça de al-Julani e iniciaram conversas abertas com o grupo rebelde, o que normalmente não faz sentido, já que, teoricamente, os americanos não negociam com grupos terroristas. Além disso, a Itália também ofereceu suporte diplomático ao HTS, para que este consiga se manter no poder. Entretanto, todo esse apoio vem com uma cobrança do grupo de agir sem incorporar políticas extremistas islâmicas e adotar correntes políticas alinhadas com os interesses ocidentais.

À esquerda, o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, e à direita, Ahmed al-Sharaa.
À esquerda, o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, e à direita, Ahmed al-Sharaa.

Quais são os grupos rebeldes na Síria e o que reivindicam

Após a queda de Bashar al-Assad em dezembro de 2024, a facção que ascendeu ao poder na Síria foi a Hayat Tahrir al-Sham (HTS) sob a liderança de Abu Mohammed al-Golani. O HTS é hoje o partido no poder e formou seu governo interino com alguns oficiais que já atuavam em regiões controladas pelo grupo, assim iniciaram seu governo prometendo uma nova constituição e abertura ao diálogo com a população tanto a maioria sunita quantos as minorias e procurando, também, unificar o exército e as forças de segurança para legitimar o seu poder porém, a incerteza sobre a unificação dos diversos grupos rebeldes sírios pois há tantos aqueles que apoiam o HTS quanto as forças curdas, denominadas Forças Democráticas Sírias, e grupos que ainda lutam por Al-Assad.

Outros grupos rebeldes atuam na Síria em diversas regiões como o Exército Nacional Sírio (SNA), uma coalizão atuante nas regiões norte e nordeste do país com diversas ideologias e que recebe financiamento e armas da Turquia. Inclui a Frente de Libertação Nacional, composta por grupos como o Ahrar al-Sham, que declara como objetivos "derrubar o regime de Assad" e "estabelecer um Estado islâmico governado pela lei Sharia", influenciando na nova estrutura política. Alguns membros do SNA também entram em conflito com forças curdas. Além do SNA, as Forças Democráticas Sírias (FDS), compostas majoritariamente por combatentes curdos das Unidades de Proteção do Povo (YPG),  controlam áreas no nordeste da Síria. Embora tenham lutado contra o Estado Islâmico, são consideradas uma organização terrorista pela Turquia devido às suas ligações com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).

Além desses, existem outros grupos menores e milícias locais operando de forma independente em diversas localidades da Síria. Essa complexidade e diversidade refletem a natureza multifacetada do conflito sírio, onde alianças e objetivos podem variar significativamente entre as facções envolvidas. Portanto a disputa por poder e domínio sobre a Síria após a queda de Bashar al-Assad, ainda continua o que influencia na fragmentação do país e deixa a Síria em um cenário mais instável do que já se encontrava.


Grupos Turcos e Sírios e a Questão dos Curdos

Hodiernamente, um conflito proeminente na Síria é a questão territorial curda. Os curdos são o quarto maior grupo étnico do Oriente Médio, com uma população estimada entre 25 e 35 milhões. Unidos por cultura, raça e linguagem, os curdos vivem em uma região montanhosa que abrange Síria, Turquia, Irã, Iraque e Armênia.

Historicamente, esse povo luta pelo reconhecimento de um Estado próprio, o Curdistão. O ideal de um Estado curdo surge no século XX e entra em pauta em 1920, com o Tratado de Sèvres. Entretanto, o Tratado de Lausanne, em 1923, relegou essa agenda, mantendo os curdos como um povo apátrida que vive como minoria étnica nos países que habita. Desde então, diversas tentativas de independência foram realizadas e brutalmente reprimidas.

A repressão curda destaca-se na Turquia, que faz fronteira com o Norte da Síria. Os curdos representam entre 15% a 20% da população turca de 80 milhões de habitantes. O povo curdo que habita a Turquia sofre uma intensa repressão, com reassentamentos, proibição de roupas, nomes e da língua curda, além de uma negação ao reconhecimento de sua identidade étnica ─ sendo, pejorativamente, chamados de “Turcos da Montanha”.

Em 1978, é fundado o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) pelos curdos que vivem em território turco. Consequentemente, houve o início da luta armada curda por um Estado independente em 1984. Após muitas mortes e desalojamentos pelos conflitos, em 1990, o PKK passa a pedir autonomia cultural e política ao governo da Turquia. Em 2013, foi estabelecido um cessar-fogo entre o PKK e o governo turco. No entanto, esse momento de paz foi encerrado em 2015, quando houve um ataque do Estado Islâmico na cidade turca de Suruç, majoritariamente curda. O PKK acusou, então, o governo da Turquia de ser conivente ao atentado e, assim, abriu fogo contra as forças turcas. Em decorrência disso, o governo lançou o que foi chamado de “guerra sincronizada ao terror”, direcionada, simultaneamente, ao PKK e ao Estado Islâmico.

A presença curda no território sírio também se mostra significativa: representam de 7% a 10% da população ─ a ONU destaca, inclusive, que a população curda caiu em 6,5 milhões desde o início da Guerra Civil Síria. A história curda na Síria também foi marcada por forte repressão: desde os anos 60, 300 mil curdos tiveram suas cidadanias retiradas, além de terras confiscadas.

A Guerra Civil na Síria, iniciada em 2011, obrigou forças do governo sírio a retirarem-se do Norte do país. Isso abriu espaço para que o PYD (Partido da União Democrática Curda da Síria) assumisse o controle da área. Em 2014, houve a criação de “administrações autônomas” curdas nas cidades de Afrin, Kobane e Jazira, no Norte da Síria. Em 2016, foi anunciado um “sistema federal” nas áreas sob seu controle, o que foi rejeitado pelos governos sírio, turco e estadunidense, que acreditavam que isso abria espaço para a perda de território ─ além de a Turquia considerar o PYD uma extensão do PKK, que o país reconhece como uma organização terrorista. O PYD afirma, então, que não busca independência, apenas garantias legais e reconhecimento da autonomia curda no território.

Como retaliação à primeira declaração do PYD, Bashar al-Assad ─ presidente sírio na época ─ garante retomar “cada centímetro” do país, declinando qualquer entidade autônoma. Ademais, o Norte da Síria passa a ter a presença militar turca, o que decorre em uma onda de ofensivas contra os curdos da região.

Paralelamente a toda essa situação, o ISIS (Estado Islâmico do Iraque e da Síria) aproveita o enfraquecimento do governo sírio causado pela Guerra Civil para conquistar territórios no Norte e Leste do país, onde os curdos assentavam-se. Esse avanço do Estado Islâmico ─ como passou a se chamar após tomar Raqqa, cidade síria, e transformá-la em capital de seu califado islâmico ─ mobilizou os Estados Unidos, que criou uma coalizão internacional para combater a agenda jihadista do EI e apoiou militarmente e financeiramente as FDS (Forças Democráticas Sírias) ─ formada por curdos sírios. Os curdos, então, tiveram um papel fundamental na derrota, em 2019, do Estado Islâmico, e que, atualmente, encontra-se em células ativas no deserto sírio.

Todavia, no final de 2019, Trump retira as forças militares estadunidenses do Norte da Síria, que estavam na região desde 2015, alegando alto custo. Além da ajuda na luta contra o Estado Islâmico, o apoio dos Estado Unidos protegia os curdos sírios.

Vulnerável, o território curdo na Síria é invadido pela Turquia ─ que desde 2016 á atacava combatentes curdos na Síria ─, com a justificativa de combate ao terrorismo ─ representado, em sua visão, pelo YPG (Unidade de Proteção Popular), parte das FDS. Outrossim, o governo turco tem a intenção de criar uma “zona tampão” para reassentar dois milhões de refugiados sírios que estão no país ─ é importante ressaltar que, de acordo com a ACNUR, a Turquia foi o país que mais recebeu refugiados desde o início da Guerra Civil Síria. O presidente Donald Trump diz que não reconhece a luta do território curdo como uma questão estadunidense e, portanto, recusa-se a ajudar essa população nessa luta. Há, inclusive, a questão da Turquia fazer parte da Otan e, portanto, ter uma aliança militar com os EUA, o que também interfere na ajuda estadunidense aos curdos em relação à Turquia.

Em 2024, após a queda de Assad na Síria, EUA e Turquia permitiram a retirada segura de tropas curdas da cidade de Manbij, cidade no Nordeste da Síria que foi palco de luta entre turcos e curdos. Além da questão de Manbij, os grupos pró-Turquia presentes na Síria pretendem tomar as áreas curdas sob controle do PYD ─ no Nordeste sírio ─ e expulsar as FDS. O SNA (Exército Nacional Sírio), por exemplo, é uma coalizão formada por grupos ligados ao Exército e à Inteligência turca e surgiu em 2017 com um de seus objetivos principais sendo acabar com as FDS.

Atualmente, a Síria está sendo palco de uma forte disputa de poder entre diversos grupos com ideologias muito distintas. Destaca-se ─ além do PYD e da FDS, que lutam pela causa curda, e o SNA, que defende os ideais turcos ─ o HTS (Hayat Tahrir al-Sham), grupo jihadista que liderou a coalizão que depôs Bashar al-Assad e luta pela formação de um estado islâmico na Síria.


Refugiados Sírios: Panorama e Perspectivas

  A Síria vive a maior crise de deslocamento forçado de sua história moderna desde as instabilidades iniciadas em março de 2011, com o desdobramento de manifestações da Primavera Árabe e a subsequente repressão violenta pelo governo de Bashar al‑Assad. Embora o número de indivíduos atravessando as fronteiras fosse relativamente reduzido durante os primeiros meses do conflito, já se contavam dezenas de milhares de pessoas fugindo da violência e buscando refúgio em países vizinhos. Em poucos anos, entretanto, esse fluxo escalou expressivamente: até 2013, mais de dois milhões de sírios haviam se registrado como refugiados em nações como Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito. Desde então, com a extensão das tensões, o número de sírios forçados a deixar suas casas não parou de crescer. Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) indicam que, ao longo da década, mais de 14 milhões de sírios foram deslocados, sendo aproximadamente 7 milhões dentro do próprio país e cerca de 6,8 milhões em territórios estrangeiros, configurando-se como um dos maiores êxodos do século XXI.

  Estima-se que 7,2 milhões de sírios ainda se encontrem deslocados internamente, vivendo em comunidades sobrecarregadas ou em campos informais, enquanto 6,2 milhões estão registrados como refugiados no exterior. Somados, os deslocados internos e externos superam 13,4 milhões de pessoas e mais de 70% dos refugiados vivem atualmente abaixo da linha da pobreza, enfrentando obstáculos como restrições legais, dificuldades de acesso a serviços básicos e aumento da xenofobia nos países de acolhimento. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento do apoio internacional tem comprometido as condições de vida em campos de refugiados, especialmente no Líbano e na Jordânia. A ausência de perspectivas reais de retorno seguro à Síria transforma esse deslocamento em uma crise prolongada e, aos poucos, negligenciada pela comunidade internacional.    

 Os refugiados sírios estão geograficamente concentrados em países de renda média e baixa cuja infraestrutura social já se encontrava subfinanciada antes mesmo da crise. Assim, a Turquia lidera o acolhimento com cerca de 3,7 milhões de refugiados sírios sob proteção temporária, seguida pelo Líbano, com 1,5 milhão, e pela Jordânia, com 1,3 milhão. Conjuntamente, esses três Estados absorvem mais de 80 % dos refugiados sírios, sendo um esforço humanitário que supera as cotas de reassentamento e as políticas de asilo de muitas nações desenvolvidas. Nos primeiros quatro anos do êxodo, entre 2011 e 2015, cerca de 1,9 milhão de sírios chegaram à Turquia, 1,1 milhão ao Líbano e 629,6 mil à Jordânia, totalizando aproximadamente 3,6 milhões de refugiados. Contudo, a magnitude da crise só aumentou: em 2025, projeta‑se que 6,2 milhões de refugiados sírios estejam oficialmente registrados fora do país, principalmente na Turquia, Líbano, Jordânia, Egito e Iraque, o que evidencia a persistência e a escalada do êxodo iniciado em 2011.

 Os países vizinhos enfrentam em seus sistemas locais de educação, saneamento e saúde uma sobrecarga extrema. No Líbano, onde um em cada cinco habitantes é refugiado sírio, muitos vivem em habitações informais, enfrentando superlotação e falta de serviços básicos, ao ponto de crianças serem obrigadas a trabalhar para complementar a renda familiar. Na Jordânia, o campo de Zaatari, criado em 2012, chegou a abrigar cerca de 100 mil refugiados de um total de 600 mil, demandando do governo um investimento anual de US $ 50 milhões para manutenção mínima de infraestrutura e assistência humanitária. Nesse sentido, a integração socioeconômica dos refugiados revela-se ainda mais complexa: barreiras legais ao trabalho formal, a lentidão e dificuldade na obtenção de documentos de residência e as barreiras linguísticas forçam muitos indivíduos na condição de refugiados a se engajarem no setor informal, no qual ficam vulneráveis e expostos a jornadas extenuantes e baixos salários. 

Embora o retorno voluntário seja o princípio norteador do regime internacional de refugiados, na prática ele permanece severamente limitado, sobretudo em contextos de conflito prolongado como o da Síria. Entre janeiro e agosto de 2024, a UNHCR verificou cerca de 34 000 retornos espontâneos de refugiados sírios; considera-se a possibilidade de o número real seja ainda superior, dada a fluidez das fronteiras e o número de deslocamentos não registrados. A esse contingente somaram-se aproximadamente 320 000 retornos provenientes do Líbano, influenciados por condições de insegurança e instabilidade após a escalada do conflito em tal nação em setembro de 2024. Assim, tais retornos, muitas vezes impulsionados por condições extremas como a deterioração econômica e política nos países de acolhida, colocam em questão a real voluntariedade desses movimentos. Embora formalmente não sejam considerados forçados, o contexto de escassez, insegurança e pressões institucionais compromete a liberdade de escolha dos refugiados, revelando uma contradição entre o retorno voluntário e por necessidade. Essa ambiguidade desafia diretamente a efetividade do princípio da não devolução (non-refoulement), pilar central do regime internacional de proteção, ao expor os refugiados a riscos potenciais em seus países de origem sem que tenham, de fato, alternativas seguras e dignas no exílio.

  Apesar da magnitude dos fluxos de deslocamento, os dados mais recentes indicam uma reticência significativa quanto ao retorno imediato. Segundo a Nona Pesquisa Regional sobre as Percepções e Intenções de Retorno dos Refugiados Sírios, conduzida pelo ACNUR entre abril e maio de 2024, menos de 2% dos refugiados entrevistados manifestaram intenção de regressar à Síria nos próximos 12 meses. O relatório revela ainda que 37% consideram o retorno viável dentro de cinco anos, enquanto 57% ainda nutrem a esperança de voltar algum dia, desde que haja garantias mínimas de segurança e meios de subsistência (ACNUR, 2024).

 Assim, tal tendência revela um paradoxo fundamental: embora o retorno seja o desfecho considerado mais desejável pela maioria dos refugiados, ele permanece inviável em larga escala sem uma transformação estrutural do contexto interno sírio. A insegurança persistente, a ausência de garantias jurídicas e a precariedade da infraestrutura básica tornam o retorno arriscado. Ao mesmo tempo, o aumento de retornos espontâneos, mesmo sob condições adversas, pode ser interpretado não como sinal de estabilização, mas como reflexo da crescente precarização das condições nos países de acolhimento, onde o apoio internacional tem diminuído e medidas de contenção têm se intensificado.

  No horizonte de soluções duradouras, o reassentamento em países terceiros e o fortalecimento de planos regionais de resiliência despontam como estratégias complementares. Para 2025, a UNHCR projeta que 933 000 sírios necessitem de reassentamento, mantendo essa população como a de maior demanda global nesse mecanismo de proteção. No entanto, a discrepância entre a demanda e a oferta de vagas, historicamente abaixo de 5 %, expõe os limites da solidariedade internacional. Paralelamente, o Plano Regional de Resposta para Refugiados e Resiliência (3RP), co-liderado por UNHCR e PNUD, busca mitigar os impactos prolongados da crise ao articular ações de ajuda humanitária e desenvolvimento sustentável em países-chave como Turquia, Líbano, Jordânia e Egito. O foco está na redução da pressão sobre serviços públicos e na promoção da inclusão socioeconômica de refugiados e comunidades anfitriãs, reconhecendo que a resposta à crise não pode ser meramente emergencial, mas deve se estruturar sobre bases duradouras e integradas.

Em síntese, a crise dos refugiados sírios escancara a fragilidade dos sistemas internacionais de proteção diante de deslocamentos de longa duração. A solução definitiva para esse impasse não reside exclusivamente no retorno, mas na capacidade de oferecer múltiplas vias de integração e proteção com dignidade. Para tanto, é imprescindível garantir financiamento estável, ampliar as políticas de reassentamento e investir em educação, saúde e infraestrutura, tanto nos países de acolhimento quanto na Síria. Sem essas garantias, o retorno em massa continuará sendo uma meta distante, e milhões de sírios seguirão vivendo entre fronteiras, à espera de uma reconstrução política, social e econômica que viabilize o exercício pleno de seus direitos.

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