Yukio Mishima e a endêmica crise de identidade no Japão do século XX
- Vinícius
- 14 de mai.
- 4 min de leitura

Esse ano marca não só um século desde o nascimento do intricado humano, romancista e dramaturgo que foi Yukio Mishima, como também o ano que finalmente terminei sua última e consagrada tetralogia Mar da Fertilidade, uma aventura que demorou 4 anos.
Tive meu primeiro contato aos 15 quando li seu renomado O marinheiro que perdeu as graças do mar, confesso que estava perdido na leitura, e nove meses depois, já com 16, li Neve de Primavera, o primeiro da tetralogia, mas tampouco senti que absorvi por completo todas as palavras — na época ainda não haviam sido publicadas as recentes edições da editora Estação Liberdade então dependi das arcaicas traduções estadunidenses dos anos 70. Enfim, é natural questionar o que foi que me fez continuar lendo livros que eu não entendia bem, seria pura pretensiosidade? Será que superestimei meu inglês? Explico, mas antes um pano de fundo.
Yukio Mishima, pseudônimo de Kimitake Hiraoka, fez parte de uma geração japonesa conturbada com as intensas mudanças na estrutura de seu país. Nascido em 1925, o autor foi mais uma das crianças que cresceram com a cintilante imagem do imperador pairando sobre si — chegou até mesmo a receber um relógio como presente de Hirohito por sua excelência escolar — então é natural que a rendição do “imbatível” império em 1945 e a renúncia da condição divina do imperador chocasse a todos. E nem é preciso olhar para o outro lado do pacífico: no interior do estado de São Paulo o choque foi tamanho que formou-se a Shindo Renmei, organização terrorista formada por imigrantes japoneses descrentes da notícia da derrota, e responsável pelo assassinato de 23 de seus patrícios opostos a este comportamento. Entre inúmeros absurdos, me chamou atenção que a organização chegou até a transmitir pela rádio uma versão da história em que Churchill desaparecia, MacArthur se suicidava e a União Soviética era desarmada.
Decorrente disso, o leitmotiv dos gigantes da literatura japonesa do século XX, como Tanizaki, Kawabata, Oe e o próprio Mishima foi a dicotomia Ocidente e Japão. Claro, seus livros tratam de muito mais: amor, morte, religião… as peculiaridades da vida concreta de forma abrangente. Mas pode-se interpretar disso tudo que a preocupação com o melhor método de balancear culturas diferentes, principalmente coletivismo frente ao individualismo, ou até como participar de um mundo que se globalizava — vale lembrar que o Japão permaneceu isolado do mundo por mais de 200 anos até 1854 — não é um questionamento reservado aos policy-makers.
Mishima talvez foi o reflexo mais trágico dessa trama. Se pesquisar seu nome irá deparar-se com fotos dele à moda ocidental, desde as vestimentas até sua própria casa, mas também o verá da cabeça aos pés em indumentária militar (curiosamente costurada pelo mesmo alfaiate de Charles De Gaulle). Estas mesmas fotos, tiradas em 25 de novembro de 1970, precedem em alguns minutos a morte do autor, que naquele lugar, o Quartel-General das Forças de Autodefesa do Japão, iria suicidar-se através do seppuku no que foi uma tentativa de um golpe de estado e restauração do poder ao imperador.
Mas me vejo com a necessidade de questionar quem morreu naquele dia, Kimitake Hiraoka ou Yukio Mishima? Em nome de quê? Num debate com alunos marxistas da Universidade de Tóquio, o escritor afirmou que concorda com eles em tudo menos um ponto: a importância do imperador. É verdade, Mishima morreu como um símbolo ultranacionalista japonês e um ícone estético do “samurai” para a nova direita mundial, o mesmo autor que teve como primeiro livro de sucesso um retrato quase voyeurístico de sua experiência com a homossexualidade e todas as minúcias de como apaixonou-se pelo corpo masculino desde a mais tenra idade. Esse que tecia suas palavras com a tamanha delicadeza que permitiu um então garoto de 15 anos se apaixonar irracionalmente por uma história que custava a compreender; os sentimentos transbordam da tinta de Mishima, que fez de sua própria vida uma (última) peça, que ansiou “trocar sua vida por uma linha de poesia escrita num derramar de sangue”. Até hoje guardo as imagens engendradas por suas palavras e a emoção que as acompanharam na memória.
Penso que em determinado momento de sua vida, Hiraoka lentamente amalgamou-se a essa sua persona tão cobiçosa, mas isso não faz de seu caso uma exclusividade da psicanálise, ou da literatura. Eu argumentaria que o Japão pós-guerra pode ser compreendido de forma muito mais profunda (emocionante talvez?) quando olhamos para a produção artística da época, na verdade afirmo que isso é aplicável a qualquer nação. Todos os dias nos perdemos no subproduto burocrático e viciante da política, das relações internacionais, da academia, do corporativo... Nós e até mesmo os considerados gênios como Mishima são vítimas disso. Então, sua morte realmente foi tão grandiosa como a direita diz? Discursou para um bando de soldados desinteressados em sua verborragia nacionalista, sonhou em morrer jovem na guerra, mas fingiu estar doente para fugir do alistamento, e em seguida viveu sua fantasia através de seus personagens jovens, belos, intransigentes e com finais trágicos. Não acho tão diferente da substância do imaginário direitista atual, mas isso deixo aos psicanalistas. Feliz 100 anos!
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