Ecos do Passado, Lutas do Presente: A Crise da democracia turca e o autoritarismo de Erdoğan
- Leonardo Meira
- 16 de abr.
- 6 min de leitura
A ascensão de Erdoğan e suas controvérsias
A República da Turquia foi fundada em 1923 sob a liderança de Mustafa Kemal Atatürk e o movimento nacionalista turco. Após a independência, a Turquia adotou um caminho de aproximação com o Ocidente e o secularismo, no entanto o país enfrentou uma série de golpes militares e instabilidades políticas ao longo das décadas.
Em 1994, uma nova figura surgiu na política turca: Recep Tayyip Erdoğan, que estava envolvido nos movimentos islâmicos emergentes em Istambul, desafiando o regime secular. Sua popularidade crescente o levou à eleição como prefeito de Istambul naquele ano. No entanto, seu mandato foi interrompido mediante a sua condenação e prisão por incitar ódio religioso, após recitar um poema que fazia um apelo à rebelião muçulmana contra a ordem secular do país.
Apesar de sua prisão de apenas quatro meses, sua popularidade não diminuiu. Após sua libertação, Erdoğan fundou o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), com o qual venceu as eleições nacionais de 2002, assumindo o cargo de Primeiro-Ministro. Inicialmente, seu governo implementou reformas que agradaram à União Europeia, incluindo o fim da pena de morte e o início de um processo de paz com as minorias curdas. Além disso, Erdoğan iniciou negociações para a adesão da Turquia à União Europeia, diminuiu a influência do exército na política e fortaleceu o poder central do governo. A estabilização da economia turca durante seu governo também foi um fator crucial para solidificar seu apoio popular.
Em 2013, o governo enfrentou sua primeira grande crise política, com as manifestações de Gezi Park. O movimento começou com a decisão do governo de destruir o Gezi Park (um espaço verde no centro de Istambul) para construir um shopping center. O protesto, inicialmente de caráter ambientalista e pacífico, rapidamente se transformou em um protesto político contra o governo. A resposta violenta da polícia turca gerou uma grande revolta entre estudantes e ativistas, que passaram a se manifestar contra o autoritarismo crescente do governo, a censura à imprensa, a perseguição aos opositores políticos e a tentativa de controle da vida privada, especialmente contra o consumo de álcool. A resposta do governo foi aumentar a repressão, acusando os manifestantes de serem terroristas.

Em 2014, Erdoğan foi eleito presidente da Turquia, cargo que antes era cerimonial, mas que passou a ter um grande poder político sob sua posse. Em 2015, as negociações de paz com os curdos, em especial o Partido dos Trabalhadores Curdos (PKK), foram interrompidas, dessa maneira, o grupo retornou à atividade militar e a perseguição do governo intensificou-se. O grupo é considerado terrorista na Turquia desde 1993.
Em 2016, o governo de Erdoğan sofreu uma suposta tentativa de golpe de Estado do grupo liderado por Fethullah Gülen. A autoria do golpe, no entanto, ainda é controversa, com muitos questionando a rapidez com que o governo respondeu, levantando suspeitas de que já soubessem do ocorrido e possivelmente tivessem planejado a situação. A resposta do governo gerou ainda mais controvérsias, com a expulsão e prisão de diversas pessoas do governo, do exército e das universidades (incluindo muitos acadêmicos críticos do governo da Universidade de Istambul). Em 2017, com a justificativa do golpe, Erdoğan iniciou um processo de mudança constitucional que resultou em um referendo aprovado, no qual foi adotado um sistema presidencialista mais forte, consolidando ainda mais o poder de Erdoğan.
Manifestações de 2025
No ano de 2025, a Turquia enfrenta mais uma crise política e social desencadeada pelo endurecimento autoritário do governo central. O episódio teve início no dia 19 de março, com a prisão de Ekrem İmamoğlu, prefeito de Istambul e uma das figuras mais proeminentes da oposição. Membro do Partido Republicano do Povo (CHP), İmamoğlu havia derrotado os candidatos apoiados por Recep Tayyip Erdoğan nas eleições municipais de 2019, encerrando duas décadas de domínio do AKP na maior cidade do país. Sua popularidade crescente e sua posição como principal nome da oposição para as eleições presidenciais de 2028 o transformaram em um alvo prioritário do governo.
A prisão de İmamoğlu foi justificada sob acusações de corrupção e terrorismo, com o governo alegando sua suposta ligação com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Em um movimento adicional para inviabilizar sua trajetória política, a Universidade de Istambul anulou seu diploma, citando irregularidades em sua transferência acadêmica ocorrida em 1990. Essa decisão tem implicações diretas, já que, segundo a Constituição turca, a posse de um diploma universitário é requisito para concorrer à presidência. Para a oposição, trata-se de uma manobra flagrantemente política, visando impedir sua candidatura e consolidar ainda mais o poder de Erdoğan.

No dia 23 de março, İmamoğlu foi transferido para a prisão de Marmara, um ato que serviu como estopim para uma onda de manifestações massivas. Protestos irromperam em 55 das 81 províncias do país, sendo violentamente reprimidos pelo governo. Aproximadamente 1.400 manifestantes foram detidos, incluindo sete jornalistas que cobriam os acontecimentos. Em Istambul, o governo ordenou o bloqueio de pontes e estradas que davam acesso à prefeitura por 24 horas, dificultando a mobilização popular.
A crise também se alastrou para o meio acadêmico: estudantes de 20 universidades declararam greve por tempo indeterminado, em protesto contra a escalada autoritária do governo. A resposta de Erdoğan veio no dia 26 de março, com um discurso duro em que classificou as manifestações como "terrorismo nas ruas" e reiterou que não cederia a pressões populares. Apesar da repressão, o apoio popular a İmamoğlu e à oposição cresceu significativamente. Pesquisas de opinião indicaram que, após sua prisão, a rejeição ao governo Erdoğan atingiu seu maior patamar desde a tentativa de golpe de 2016. Grandes cidades, como Istambul, Ancara e Esmirna, tornaram-se polos de resistência, com cidadãos organizando atos diários, greves e campanhas de mobilização online. Figuras da sociedade civil, intelectuais e empresários também se posicionaram contra o autoritarismo crescente, evidenciando uma crise que transcende o campo político e atinge a sociedade turca como um todo.
A prisão de İmamoğlu se insere em um processo mais amplo de erosão democrática na Turquia, marcado pela instrumentalização do judiciário contra adversários políticos, a repressão sistemática da liberdade de expressão e o uso da força para silenciar dissidências. Erdoğan, cada vez mais concentrado em consolidar seu domínio absoluto sobre o país, dá mais um passo no caminho do autoritarismo, aprofundando a polarização interna e isolando ainda mais a Turquia no cenário internacional.
Repercussão Internacional
A prisão de Ekrem İmamoğlu provocou uma forte reação internacional, aprofundando as tensões entre a Turquia e seus aliados ocidentais. A União Europeia condenou imediatamente a detenção, classificando-a como uma clara violação dos princípios democráticos e do estado de direito. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, afirmou que a prisão de İmamoğlu "levanta sérias preocupações sobre a independência do sistema judicial turco e o compromisso do país com os valores democráticos". Vários governos europeus, incluindo Alemanha, França e Reino Unido, convocaram os embaixadores turcos para explicações e ameaçaram reconsiderar a cooperação política e econômica com Ancara.
Nos Estados Unidos, o Departamento de Estado manifestou preocupação com o que chamou de "clara instrumentalização do sistema judiciário para eliminar a oposição política". Senadores de ambos os partidos defenderam a imposição de sanções contra membros do governo Erdoğan caso a repressão se intensifique. Além disso, congressistas democratas e republicanos pressionaram a Casa Branca a rever a venda de caças F-16 à Turquia, um negócio que já vinha enfrentando resistência devido ao histórico de violações de direitos humanos por parte do governo turco.
A OTAN, expressou desconforto com os acontecimentos, embora tenha adotado um tom mais cauteloso. Jens Stoltenberg, secretário-geral da aliança, declarou que "o respeito à democracia e ao estado de direito são pilares fundamentais dos países membros", sem, no entanto, sugerir medidas concretas contra Ancara. Nos bastidores, diplomatas ocidentais avaliam que a crise interna na Turquia pode comprometer ainda mais a já desgastada relação do país com a aliança militar, especialmente no contexto da guerra na Ucrânia e da ampliação da OTAN com a entrada da Suécia e da Finlândia.
Organizações internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, denunciaram a prisão de İmamoğlu como parte de um padrão crescente de perseguição política na Turquia. Em comunicados oficiais, ambas as organizações pediram sanções direcionadas contra membros do governo turco envolvidos na repressão e defenderam maior pressão internacional para garantir a libertação dos presos políticos no país.
No Oriente Médio, a reação foi mista. Enquanto países como Israel, Egito e Emirados Árabes Unidos manifestaram preocupações discretas sobre o caso, aliados mais próximos de Erdoğan, como Catar e Azerbaijão, mantiveram silêncio ou expressaram apoio ao governo turco. A Rússia e a China, por sua vez, evitaram condenar a prisão e reforçaram seu compromisso com a soberania turca, defendendo que "questões internas devem ser resolvidas sem interferência estrangeira".
No âmbito econômico, a crise política gerou desconfiança nos mercados. A lira turca sofreu uma desvalorização acentuada após a prisão de İmamoğlu, refletindo a preocupação de investidores estrangeiros com a instabilidade do país. Além disso, o risco de sanções e a deterioração das relações com a União Europeia e os Estados Unidos podem impactar negativamente a economia turca nos próximos meses, ampliando os desafios já enfrentados pelo governo Erdoğan.
Em meio à pressão internacional, o governo turco manteve uma postura desafiadora. O ministro das Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, acusou os países ocidentais de "hipocrisia" e afirmou que "Ankara não aceitará interferências em sua soberania". Erdoğan, por sua vez, reforçou seu discurso nacionalista, alegando que a reação internacional fazia parte de uma "conspiração estrangeira" para desestabilizar a Turquia.
A crise gerada pela prisão de İmamoğlu colocou a Turquia em um novo ponto de inflexão. A pressão externa cresce à medida que a repressão interna se intensifica, criando um cenário de incerteza sobre o futuro político do país e suas relações com o mundo.
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